#6 lençóis 400 fios, Luke Danes e não ser uma mulher extraordinária
ou "é muito difícil fazer tudo sozinha"
1. uma das milhares de coisas que o burnout mudou em mim,
foi que nunca mais consegui ignorar a minha necessidade de deitar.
estou no meio de uma sentença e de repente sinto aquela sensação de algo me puxando pela costela, a mesma que sinto quando estou triste, mas de uma forma menos intensa. e é isso. esse é meu corpo dizendo que preciso horizontalizar. no meio da live, na casa de show, quando já estou vestida para sair, na 7º rep de stiff: eu posso até não ceder, mas eu não consigo ignorar a necessidade de me deitar.
então lá estava eu, deitada, assistindo Gilmore Girls pela quarta vez (a primeira vez foi em 2022, eu não suportava a Rory quando eu era adolescente), num "dia de trabalho". e, bom, todo dia é dia de trabalho quando você tem sua própria empresa, então qualquer dia deve ser final de semana também - penso fechando o notebook.
alerta de spoiler!
mas, assim, se você não assistiu Gilmore Girls ainda, ou de novo depois de adulta, serei obrigada a chamar Ynara Marson e montar um "Clube da Série". porque assistir com a idade da Lorelai - e atenta a isso - é algo diferente.
aninhada no jogo de cama 400 fios que comprei depois de um lançamento bem sucedido, abro a Netflix no Ipad e justamente no episódio em que parei, falta dinheiro para terminar a reforma da pousada que a Lorelai e a Sookie estão abrindo. ser empreendedora é uma merda às vezes, apesar dos lençóis 400 fios.
eu mesma já abri um estabelecimento com uma ex-amiga (não, a amizade não terminou por conta da sociedade) e vivi esse exato momento. sentadas nas mesas já compradas em meio ao cal e caixas de azulejo, fazemos as contas e constatamos que o dinheiro acabou. muito antes daquela casinha do bairro de Pinheiros parecer minimamente ter cerveja gelada e pratos vegetarianos, precisaríamos pedir dinheiro a alguém. só de lembrar tenho vontade de chorar.
e foi o que eu fiz assistindo à série, comecei a chorar e me compadeci por todas as mulheres independentes que resolvem ter um negócio. por todas as amigas que sonham juntas em abrir uma loja-pousada-café-marca de biquíni-estúdio de design-restaurante-etc.
por nós que, para nos desvencilharmos do tédio (e da ameaça da falta de recursos) de ser uma mulher no patriarcado, decidimos pela queda livre do empreendedorismo ao invés da ladeira do corporativo. as duas opções são difíceis, amadas. mas somos girly girly girls e aqueles sapatos não se pagam sozinhos. só dar conta da vida já é cansativo. empreender é a cereja no bolo da exaustão.
quando a Lorelai chora e conta pro Luke que de vez em quando ela queria ser casada, queria ter um homem que dissesse a ela que tudo ficaria bem e que pudesse ficar para receber o entregador da pia, já estou fungando em prantos.
não é possível que 20 anos depois dessa cena ir ao ar, ser uma mulher solteira e independente 30+ seja praticamente a mesma experiência. mas aparentemente é.
Lorelai: sabe, são poucas as vezes na minha vida em que me pego pensando que queria estar casada, mas hoje... eu sou feliz, sabe? gosto da minha vida, gosto dos meus amigos, gosto das minhas coisas. meu tempo, meu espaço, minha tv.
Luke: claro.
Lorelai: mas de vez em quando, só por um momento, eu queria ter um parceiro, alguém pra segurar a barra, alguém pra esperar pelo técnico da tv a cabo, fazer café PRA MIM de manhã. receber essa maldita pia antes que ela seja enviada de volta pro Canadá!
Luke: o que aconteceu?
Lorelai: só achei que tinha tudo sob controle, mas não tinha, e a pousada está desmoronando. isso sempre foi meu sonho e agora eu tenho, e está aqui, e eu tô falhando e não tô dando conta, passo cada minuto correndo e trabalhando e pensando, e eu pensei que teria ajuda, mas a Sookie tem o Davey e o Michel tem a Celine e eu... não consigo fazer tudo sozinha! e nem tenho tempo de ver minha filha mais, inferno, esqueça ver, nem de falar com ela eu tenho tempo, e sinto falta dela. e fiquei lá na casa dos meus pais só ouvindo minha avó basicamente me chamar de caso perdido e eu nem consegui discutir com ela, nem consegui dizer nada, porque é verdade, tô ficando sem dinheiro! e ia te pedir 30 mil dólares no jantar de hoje, é patético, eu sei.
well, Lorelai, definitivamente não poderia te entender em 2003.
2. em seu livro "A Jornada da Heroína",
Maureen Murcdock descreve de forma muito cênica o fenômeno da mulher que "não precisa de um homem", porque seu masculino interno dá conta do recado1
Durante a segunda etapa da jornada da heroína, a mulher deseja se identificar com o masculino ou ser salva por ele. Quando decide romper com as imagens estabelecidas do feminino, ela inevitavelmente inicia a tradicional jornada do herói: veste sua armadura, monta seu corcel moderno, deixa os entes queridos para trás e segue em busca do tesouro reluzente. Ela refina as habilidades do logos. Procura caminhos bem definidos para o sucesso. Vê o mundo masculino como saudável, divertido e proativo. Os homens realizam coisas. Isso alimenta sua ambição.2
em um mundo onde, de cada quatro mulheres que sofrem violência doméstica, uma não denuncia o agressor porque depende financeiramente dele, eu meio que agradeço por ter sido criada para “dar conta de tudo”. agradeço pelo meu corcel moderno, pela facilidade que isso me gerou no mundo objetivo do patriarcado. brinco que fui criada por matriarcas em uma família FEMISTA (não feminista, eca, elas detestam essa palavra) – mulheres como nós, são seres especiais, acima dos homens, jamais iguais a eles.
nós, mulheres Atenas Alves (sobrenome de solteira da minha mãe) somos bravas, engraçadas, religiosas, "trabaiaderas", escrachadas. criamos nossos filhos, os filhos umas das outras e ainda cuidamos do bar que algum primo resolveu abrir sem se dar conta de que não sabe nada sobre fazer contas. pegamos roupa para costurar, pegamos enxada, pegamos a "capa da pexera", só não pegamos um resfriado. tomamos conta de tudo, tomamos cuidado, tomamos cerveja. até hoje, desde a geração de Idalina Conceição Alves, minha vó-Dalina, nenhuma de nós se tornou "mãe solteira", o que apesar da normalidade ainda é uma coisa muito mal vista no interior. agora, os homens dessa família... cresci vendo os homens com duas incumbências: montar a churrasqueira e garantir netos – principalmente os não planejados.
eu poderia passar o dia escrevendo sobre a experiência de ser a neta asiática da Dona Idalina, e a filha da Dirce, mas estamos chegando no tópico central de hoje: ser independente é difícil também pelos motivos menos óbvios. você começa a achar que não tem direito de, as vezes, depender. de contar com alguém além de você mesma. é uma espécie de desamparo aprendido3
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