#4 a moça quietinha no canto da sala, o BOPE e La vie en Rose.
ou "uso ficção para relatar inseguranças"
15 minutos de leitura no seu dia. para te lembrar que a internet precede as redes sociais. de nada.
eu tive uma amiga, vamos chamá-la de Sabrina. ela era meu modelo de como eu deveria ser enquanto mulher. Sabrina e eu tínhamos um encontro no futuro, quando eu fizesse 30 anos, um encontro especial, combinado no dia em que nos conhecemos. e nos conhecemos (ou eu a conheço) desde a infância.
combinamos esse encontro e eu segui minha vida toda a espera dele.
Sabrina era um exemplo a seguir, e eu me sentia muito orgulhosa de mim mesma nos raros momentos onde eu conseguia agir como ela. eu queria aprender por osmose a sua natureza, por isso passávamos muito tempo juntas.
no começo era algo sobre a inteligência e a destreza dela ao lidar com as pessoas. mas cresci assistindo minha amiga ganhar complexidade, construir um universo em volta de si, minhas aspirações cresceram também. a vida dela era como um romance com vários volumes, e eu queria viver naquela história.
ela era amorosa, de um jeito desapegado e quase etéreo. ela tinha energia ilimitada, mas sabia ser sutil. a maior parte do tempo, o que ela dizia soava como poesia ou como um livro de suspense. suas palavras pairavam no ar. Sabrina ia se tornando minha musa da adolescência, e eu mal podia esperar para ver o que ela seria quando adulta.
eu nunca soube dos seus relacionamentos. mas tinha certeza de que ela sabia se relacionar. ela devia ter uma capacidade de escuta infinita. devia conhecer a medida certa de se doar, eu pensava. ela com certeza tinha um faro fino para o cara certo e para o cara errado. amar era da natureza dela, só podia. ela podia amar os pais e os irmãos, e tinha um tanto de amor sobrando para a manutenção das demais relações.
era leve estar em sua presença. ela se movia pelo mundo com uma discrição que eu invejava. isso eu nunca consegui imitar: sua discrição e suavidade.
ela não conhecia "a defensiva", porque nada nela era um convite ao ataque. já eu, nascida armada até os dentes, letrada nas disputas de poder. o peso bélico já tinha me cansado lá pelos 13.
eu buscava nela inspiração quando me aproximava de um novo grupo de pessoas. um curso, um novo trabalho. quando me mudei para São Paulo, ela veio junto, e eu vi uma oportunidade de poder me reconstruir um pouco mais como Sabrina.
"aquela menina quietinha no canto da sala. ninguém sabe da vida dela" era quem eu queria ser. e falhava miseravelmente. em cinco dias eu já estava numa festa, bebendo algo que não sabia o nome, olhando nos olhos de um desconhecido, suada de tanto dançar, o dia amanhecendo. me perguntava o quão longe eu estava de ser quietinha.
Sabrina, sábia e mansa, sempre me dizia que eu chegaria lá. eu ainda tinha tempo de me tornar sua cópia. chegava no dia seguinte com café e torradas para minha ressaca, e me presenteava com essa noção de tempo. afinal de contas, meu lobo frontal nem estava oficialmente formado (a promessa era de que eu fosse uma adulta aos 26), eu poderia ser mais madura, compassiva, era só tentar com mais afinco amanhã.
era só eu acordar amanhã e me policiar ao longo do dia. prestar atenção em como me movo. acolher críticas graciosamente. ser leve. focar na minha educação, não me perder no outro. perdoar. com o tempo eu me tornaria uma yogini, uma pluma, a Jackeline Kennedy — e tudo o mais que eu relacionava a aura que queria ter graças ao exemplo virginal e compassivo dessa amiga.
e eu me dei tempo: uma década. encarei meus 20 anos como um treinamento, como um tempo de aclimatação. a cada dia de deslize, pensava comigo "é só me policiar mais amanhã". a cada ressaca. cada vez que eu percebia meu short curto demais somente quando os homens na linha lilás pareciam com fome. a cada palavrão dirigido a tais homens. a cada cara que eu não deveria ter beijado na Augusta. a cada dia que acordei com o rosto inchado de chorar. no dia em que eu dormi no carpete da porta do apartamento trancado por dentro. no dia em que fumei três cigarros antes de levantar da cama. todo dia seguinte era dia de me policiar.
aos 26 eu ainda não era adulta. mas, imagine, eu era o próprio BOPE combatendo minhas imperfeições.
no plano de fundo, estava esperando o dia em que nos encontraríamos, aos 30, e seríamos como irmãs gêmeas. ela se veria em mim, e eu nela. as outras pessoas se espantariam com o quanto mudei. "I shall be the most sophisticated woman" na rodoviária da Barra Funda. meu próprio apartamento, estabilidade financeira, minha postura e o que mais pudesse colocar nos olhos da minha mais antiga amiga, um brilho de orgulho. eu poderia então ser uma fada, não o Capitão Nascimento.
aos 27, quando decidi deliberadamente me tornar quem eu ainda acreditava que podia ser, começamos a nos desencontrar, Sabrina e eu.
eu entrava por uma porta apenas para saber que ela acabava de sair. mas a sua presença eu ainda conseguia sentir, me guiando. não estávamos grudadas, mas ainda nos víamos várias vezes ao dia, então foquei em me construir e dei a ela espaço. eu tinha muito o que fazer, de toda forma. eu tinha decidido abrir uma empresa.
aos 28 não tínhamos tempo para almoçar juntas, o que antes era rotina. ficava sozinha com meus pensamentos. nossos encontros começaram a se tornar curtos e uma atmosfera de "você está tão diferente" nos circundava. eu estava diferente? ela estava diferente? eu não sabia. esse tinha sido o ano onde tanto havia mudado, onde tinha aprendido o termo "codependência" e minha lente para tudo tinha se ajustado. encontros curtos passaram a ser semanais. eu já começava a esquecer como "devia ser", porque minha amiga deixava de ser um ponto de referência. ela ia se desfazendo como falhas em um holograma.
aos 29 eu não tinha notícias dela. meses. eu justificava "foi a pandemia, mexeu muito com todo mundo". eu tive um burnout aos 29. e me dei alguns meses de "dispensa" do policiamento, e dos projetos de ser a "moça quietinha no canto da sala". eu precisei me recuperar física e mentalmente primeiro, e então reaprender a trabalhar, e então me acostumar com toda uma nova disposição diante da minha criatividade. estive muito centrada em mim, mas eu jurava que uma hora ela teria que voltar. tinha fé em nosso encontro, marcado anos atrás. na minha forma de ver o mundo, os anos adicionavam peso ao compromisso. aos 30 eu estaria lá, ela também, data e hora marcadas como em pedra.
5 de setembro de 2022.
eu passei dias mirando a porta. Sabrina não tocava a campainha. jantar no meu aniversário, Sabrina não apareceu. nem sombra dela nos meus planos para nova década. meus 29 anos. vou sempre lembrar como o ano em que fui abandonada pela minha musa.
7 de setembro de 2022. 16 de setembro. 28 de setembro. nada.
eu finalmente tive tempo para reparar na falta da amiga-modelo. não sabia mais o que vestir, entrei em todos os provadores sozinha. tive que decidir por mim como falar e com quem. nem lembrava o tom de voz certo para usar em um date, gargalhei em todos eles. no uber, a mente vazia sem a voz e nossas conversas sobre o futuro, tudo o que eu podia sentir era a sensação do vento fresco no rosto. vazia de aspirações sobre o que deveria estar sentindo.
sinceramente, perdi os parâmetros e me sentia fora de controle.
a amiga com quem eu mais contava me deixou. a amiga que esteve comigo me dizendo que eu podia ser melhor em todos os momentos mais difíceis, que me deu forças para fazer o improvável, estava se desfazendo no ar.
a facilidade com que ela se desfez em 3 anos me provou o que eu mais temia. Sabrina nunca poderia ter sido real.
e por isso, aos 30 e tantos, no consultório da minha analista eu a vi pela última e dolorosa vez. sentada no divã que uso apenas para jogar minha bolsa quando chego (a Sabrina que conheço e amo se deitaria no divã sabendo do seu dever de analisada). ela aparecia naquela sessão como quem teve corpo um dia. sorrindo com tristeza e olhos compassivos. acho que nunca a tinha olhado nos olhos. meus medos e desejos todos ali.
descolada dela depois de 1 ano de abandono, eu a vi transparente e impossível. em toda sua construção judaico-cristã. seus traços de "manic-pixie-dream-girl". a alma corporativa e sapatos adequados à ocasião.
vi sua certidão de nascimento, quando precisei de uma imagem feminina para seguir, tão pequena. vi o motivo do seu abandono: o momento onde eu escolhi crescer. e todos os meus sonhos de criança sobre o que uma mulher de 30 anos deveria ser, começaram a desvanecer.
para que eu pudesse amar a mim — semente de "amor de si" que plantei em solo muito muito fértil, anos atrás — eu precisava passar mais tempo comigo, sem a presença perfeita e inatingível dessa figura. porque a fantasia de vir a ser como ela era mais real que a própria realidade. e eu não poderia amar o que não conheço.
eu não poderia amar nada, embebida em tantas certezas e diretrizes.
quando ela se foi, partiu o meu coração. eu senti as duas batidas descompassadas, das duas partes novas. nunca acreditei que nós realmente nos separaríamos. não achava que eu poderia amar a mim mais do que amava o que queria me tornar. doeu como uma briga com uma grande amiga, de carne e osso, com quem eu compartilhei as minhas maiores vulnerabilidades e inseguranças. doeu como o que foi: perder uma parte de mim.
eu chorei pela decepção de, não somente perceber que não serei capaz de ser essa pessoa nessa encarnação, mas também de perceber que nem Sabrina, minha grande amiga do futuro-eu, poderia ser.
e pelo medo de estar sozinha de agora em diante. quem vai me fazer café e torradas no dia seguinte a ressaca?
bom. em todo caso, Ela sempre fui Eu. eu fiz cada torrada, eu compartilhei todas as refeições comigo. cada conselho que essa "moça quietinha no canto da sala" me deu, veio de mim. e se antes eu precisava dela para que eu tivesse para onde me mover no mundo (direção), hoje preciso dela para ser a voz que celebra cada descoberta sobre mim (âncora). desamarradas das exigências (que já me resignei em não ser capaz de cumprir) talvez as tantas partes de mim, possam entrar em um denominador comum e isso se trate de uma nova relação. eu preciso me alegrar em ser eu, da forma mais íntegra que eu puder. e ser minha melhor amiga, como através dela fui.
"Querido Pai, Estaremos nos formando na próxima semana e eu receberei meu diploma. Quero agradecer-lhe agora pelos dois anos mais maravilhosos da minha vida. Eu sempre vou te amar por ter me enviado para cá. É tarde da noite e alguém do outro lado está tocando "La Vie En Rose". É a forma francesa de dizer "Estou vendo o mundo através de óculos cor-de-rosa" e isso expressa tudo o que sinto. Aprendi tantas coisas, Pai. Não apenas como fazer vichyssoise ou cabeça de vitela com molho vinaigrette, mas uma receita muito mais importante. Aprendi como viver... como estar no mundo e ser parte do mundo... e não apenas ficar de lado e observar. E nunca mais vou fugir da vida... ou do amor também. Estou pegando o avião de volta na sexta-feira, Pai. Você não precisa me buscar no aeroporto. Vou pegar o trem de Long Island e você pode me encontrar na estação de trem, às 16h15. Se você tiver dificuldade em reconhecer sua filha, serei a mulher mais sofisticada na Estação de Glen Cove."
talvez essa história apareça no meu livro, quem sabe.
espero que você tenha uma melhor amiga falando dentro do seu coração, leitora. mas mais ainda, espero que você nunca se leve a acreditar que sucesso é ser algo outro que não você mesma, e quem você já é.
ainda bem que você está dando vida aos seus escritos! você é foda ♥️
Lindo, nan. De uma moça quietinha no canto da sala cuja Sabrina se parece bastante com você.