#9 estar perdida, aprender a trabalhar e construir amizades sólidas
ou "meu conselho se você tem 20 poucos anos, ou sente que tem"
eu abro os olhos, e eles já estão cheios d'água. a pressão no peito, o ar que entra curto, sem espaço. a roupa de ontem. estico o braço e busco um maço de cigarros em cima do caixote de madeira que me servia de mesa de cabeceira. acendo um, são 6 da manhã. percebo o dia acinzentado lá fora, decido não ir à faculdade e acendo outro. coloco o maço de volta na mesinha. olho o fumaça se desenhar contra o teto. "o que estou fazendo da minha vida?" — acendo o terceiro. fumo calmamente até o final e decido que basta.
essa história começou difícil, mas teve muitos finais felizes.1
eu tinha 21 anos, meu foco era tudo o que achava que precisava conquistar. eu havia conquistado muito. e eu tinha também acabado de perder meu pai, meu avô, um estágio tipo "O Diabo veste Prada" (não lamento por isso, mas ainda senti como uma perda) e minha energia vital estava trêmula e quebradiça.
em contrapartida (porque a vida sempre tem uma) tinha acabado de me aproximar do yoga e reencontrar uma espiritualidade que estava amortecida dada a minha grande e persistente ambição — isso me mantinha pulsante. aquele último cigarro tinha gosto de desistência e eu desisti.
passei essas primeiras décadas fazendo tudo o que podia para não me sentir perdida. "determinada" era minha palavra. mas eu estava submersa no vazio de propósito há mais tempo do que tinha me dado conta.
então, 10 anos atrás, num dezembro caótico como esse, eu estaria arrumando minha mala com o necessário para tentar regredir.
tranquei a faculdade depois de uma crise de choro com minha mãe ao telefone. eu achava que queria voltar para casa. eu achava que a mudança que a vida tinha operado em mim era reversível.
meu plano, cunhado aos 6 anos de idade, consistia em 1. me mudar para uma cidade grande, 2. ser estilista, 3. ser rica, 4. ser a independente.
mas de repente todas essas coisas pareciam conceitos abstratos, conjuntos vazios. eu não estava determinada, eu estava cansada, então fiz uma mala e comprei uma passagem de ônibus.
consegui ficar no interior e sentir pena de mim mesma por exatos 20 dias. 20 dias depois eu corria de volta para São Paulo com 80 reais no bolso e uma entrevista de emprego marcada.
era minha segunda vez pedindo emprego em um restaurante, e a segunda vez correndo para o que eu sabia ser a única forma de ser minha própria versão de mim.
dessa vez eu viria com uma decisão firme. eu não transformaria aquele momento em uma lamentação triste e diária sobre "não viver meus sonhos". eu trataria como o que era: uma fase. eu tiraria o melhor dela, e não perderia minha energia reclamando ou me julgando como eu fiz antes.
estruturei um plano simples, muito diferente daquele plano desenhado aos 6 anos de idade.
ter um salário fixo digno. ser boa o suficiente naquele trabalho, nem mais, nem menos
encontrar alguém para dividir um apartamento
testar todas as religiões que eu pudesse e experimentar todas as atividades que eu pudesse enquanto eu buscava uma nova direção
não me estressar sobre estar perdida, me permitir não saber o que eu queria, pela primeira vez em 20 anos
não sei se tenho muitas leitoras e seguidoras na faixa dos 20, mas eu imagino como ter 20 e poucos anos nesse momento da humanidade pode ser desafiador. ter 30 com certeza é.
como millenial, tenho todas as minhas reclamações sobre a cultura fútil, gordofóbica2, e ingênua dos anos 2000 e 2010. ah, os sonhos que me foram vendidos... comprei um por um. mas ter passado por 3 apocalipses e tudo isso constrói caráter, tinha que ter uma parte boa.
sei que falo de uma perspectiva muito pessoal. mas mesmo com todo o caos de ter visto a revolução digital acontecer (e me tornar parte dela com o meu trabalho), eu tive tempo offline o suficiente para saber quem sou — e isso é um superpoder em 2023.
“not all those who wander are lost”
(nem todos os que vagam estão perdidos)
em todo canto da (minha) internet vejo indicações de livros, filmes e artigos sobre se sentir perdido nessa década da vida.
mas eu pergunto, se você não se perder aos 20, quando você pretende se perder?
se você não fez isso aos 20, faça o quanto antes. questione tudo e se permita entreter possibilidades assim que possível.
entendo (ô, se entendo) a pressão social para fazer as escolhas certas, e se manter nessas escolhas. mas nossa habilidade em fazê-las precisa ser refinada ao longo dos anos e das decisões erradas. seu cérebro se desenvolve por muito mais tempo do que os 18 anos que supostamente te tornariam uma adulta.3
o que eu quero dizer é: se você está se sentindo jovem e perdida, relaxe. se você está se sentindo velha antes dos 30, me poupe. se você está sentindo que é a hora errada de questionar a vida em busca do seu verdadeiro eu, acho que já era tempo, amiga.
então, enriquecendo a thread de ajudar a geração Z a se sentir menos perdida, e criando uma de ajudar a jovem de 30 anos que era responsável demais aos 20 se perder com calma, aqui vai meu único (por enquanto) e maior conselho:
use esse tempo em que você não sabe quem é e o que quer para aprender a trabalhar, e formar relações substanciais.
aprenda a colocar seu potencial no mundo do trabalho e jogar o jogo sem surtar (nem se render ao romantismo). aprenda a ser uma boa companhia para si mesma, para os outros e construir amizades antifrágeis — que melhoram com cada queda.
sobre aprender a trabalhar
se você não nasceu herdeira, como eu, você vai trabalhar uns bons anos da sua vida.
quando falo sobre aprender a trabalhar, não quero dizer "aprender a ser uma melhor formiguinha no capitalismo". falo tanto sobre aprender a transformar seus recursos em recursos, e a se comportar no mercado de trabalho sem ser engolida por ele.
o que você está buscando experimentar e aprender:
os seus direitos trabalhistas, como lidar com seus documentos
se você é REALMENTE rende melhor trabalhando mais cedo ou mais tarde (fora do registro adolescente de "odeio acordar cedo porque odeio ir para a escola"), e para qual tipo de função em cada horário
como proceder em uma entrevista de emprego, como se demitir graciosamente
o que é ok e não é ok dentro de um ambiente de trabalho, tanto para você quanto para os outros
como descobrir exatamente o que esperam de você, independente do cargo que ocupa e como pedir feedbacks
como se vestir e se arrumar de maneira barata, rápida e adequada para qualquer tipo de circunstância
que por mais incrível que seu chefe seja, ele não é seu amigo e isso não faz dele uma pessoa ruim
como usar o metrô, o ônibus e os aplicativos de mobilidade
o que não falar. o que preservar da sua privacidade e intimidade
como estabelecer relações profissionais com as pessoas, levando em consideração o afeto normal que seres humanos criam, mas sem perder de vista as coisas práticas da relação profissional
se você tem mesmo o "perfil de empreendedora", ou se você só tem problemas com autoridade (no meu caso, ambos)
quanto você precisa ganhar, quanto vale sua hora de trabalho, como se planejar de acordo para não vender o almoço para comprar o jantar
qual é o papel do trabalho na sua vida — SPOILER: não é fazer você se sentir amada
que tipo de trabalho é leve para você, como encontrar funções que não te façam querer vomitar e que sejam éticas e pagas dignamente. nem sempre vamos manifestar nossos dons e, por vezes organizar, vender, calcular, arrumar, planificar ou atender é tudo o que precisamos fazer para ter um salário
comunicação não violenta, mas também como ser assertiva e estabelecer limites
quais batalhas não valem a pena, quais batalhas precisam de você
uma lição que posso te dar de bandeja: todo mundo vende, faça as pazes com isso no seu coração. se você não empreende – e, portanto, não vende os seus próprios produtos/serviços – você vende as suas horas e sua força de trabalho para uma empresa que vende algo. ela faz o esforço de vender algo por você, e você vende seu tempo/força para ela. assim como, para ser contratada você precisa saber se vender. no capitalismo (ame ou odeie) todos vendemos algo. pare agora mesmo de criticar que vende algo.
um bônus: começou a trabalhar? comece a terapia. existem muitos programas sociais onde psicólogos atendem por um valor menor até que você possa pagar mais.
sobre relações com substância
a tendência moderna é a de passarmos mais tempo orbitando o status "solteira" do que em qualquer momento da história da humanidade. e quando digo "solteira" quero dizer "sem uma pessoa com quem você está construindo uma vida não apenas emocional, mas também materialmente conjunta" (nem todo mundo está pronto para essa conversa, fica para uma outra edição).
nossa família de origem tem um papel, é claro, mas nesse momento da vida adulta – o momento de estarmos perdidas – entram em cena nossos amigos, a família que precisamos construir nesse gap.
ter amigos se torna uma estratégia de bem viver, a medida que o capitalismo (olha ele de novo) estrategicamente nos isola para nos vulnerabilizar. se você quer que um dia exista uma rede de apoio para, por exemplo, te ajudar a criar um filho em um círculo saudável de adultos, é hoje que você precisa firmar essas relações.
na solidificação das suas amizades, você está criando/descobrindo:
quais são os níveis de acesso, os tipos de proximidade, que você dá a cada pessoa. dependendo do que elas colocam na relação, e do que esperam de você. nem todo mundo está na área vip da sua vida
quanto tempo você dedica a cada pessoa, também levando em consideração esses níveis de acesso
como parar de tentar salvar e resolver os problemas dos outros, assim como parar de tentar ser salva
o que é codependência emocional, e quão facilmente podemos cair em uma relação codependente com um amigo
onde conhecer pessoas novas, que serão relações mais superficiais e ainda assim importantíssimas no conjunto de uma vida em comunidade
como oferecer apoio, na essência do que isso significa, não no senso comum
como lidar com amigos de idade, raça, gênero, orientação sexual, classe e cultura diferentes
quando é ok emprestar dinheiro, livros e seu apartamento. e quando não.
como ter uma conversa difícil, como alinhar expectativas, como terminar uma amizade
como pedir desculpa (essa não consegui masterizar até hoje)
onde não se meter e onde intervir
como não triangular, não usar o desabafo como aquele alívio que faz empurrar os problemas com a barriga – ir direto a causa e resolver
como não projetar, perceber o gatilho que o outro te causa e lidar internamente (olha a necessidade da terapia)
como comunicar o que sente sem despejar no outro, ou fazer parecer que ele tem que se responsabilizar por isso
como apresentar amigos para que eles se tornem amigos também
como e quando pedir ajuda, como fazer todo tipo de pedido
quando relevar e quando não relevar
como não se apaixonar por todas as pessoas interessantes que cruzarem seu caminho, onde fica a linha limite do erótico
como ter amigos para todos os tipos de situações, atividades e momentos
como participar da vida das pessoas ativamente
como se preocupar sem invadir, sem julgar
a lição na bandeja: a coisa mais importante que aprendi sobre amizade nos meus 20 foi que elas não amadurecem naturalmente. são construções. como não temos uma ligação erótica, tudo parece mais leve e de certa forma é, mas ter amizades que se tornem apoio, comunidade e família é um trabalho. um trabalho que vale a pena, talvez o trabalho que mais valha a pena.
faz 13 anos que saí da casa dos meus pais. 7 deles foram dedicados (intuitivamente) ao que descrevi acima. me pergunto se teria construído a base que tenho hoje, se tivesse cedido a pressão de ter tudo resolvido/escolhido.
me permitir me perder, tornou essa fase mais leve. eu não fiz dos inconvenientes (trabalhar aos fins de semana como garçonete enquanto eu não sabia o que queria não era nada conveniente) um inferno. lidei com os inconvenientes como escolha e escola.
todas as escolhas "erradas" foram importantes. eu vaguei, perambulei, encontrei o que não estava procurando. mas quando cheguei aos 30, bem mais direcionada pro que faz sentido para mim, eu já tinha as "minhas pessoas", que estavam torcendo pelo meu sucesso. e já havia construído a confiança na minha capacidade de trabalhar para fazer qualquer coisa acontecer.
por conta dessas duas coisas, hoje eu tenho você me lendo.
tenho o que tenho graças a minha determinação. mas, ah! se eu sou o que eu sou foi porque eu soube me perder na hora certa.
te desejo o mesmo.
PS: se você tem 30, 40, 50 e está pensando "ei, eu me sinto perdida", esse post também é para você. porque sinto que "garota perdida de 21 anos" é um arquétipo moderno, assim como "adolescente de 30 anos".
atualizações e ventos novos
a ganhadora da Mandala Lunar (ação promocional que fiz em novembro) foi a Anara (annaraskenberg) 🖤
decidi recomeçar o “lançamento oficial” dessa newsletter em Janeiro ou Fevereiro, dessa vez com um planejamento melhor das edições especiais (e nenhuma black friday no meio disso). dizem em inglês que “third is a charm”
estou mudando algumas coisas na programação do Sendo Amadora, mais adequada a como eu quero cuidar desse projeto. influenciada pela
decidi honrar minha escrita semanal, mas deixar o dia livre. sempre que possível postarei às terças, mas só porque gosto desse dia! à partir de agora qualquer dia da semana pode ser dia de Sendo.na próxima semana, duas sessões especiais para assinantes estarão no ar. o Sendo Organizada, onde dividirei com vocês meu sistema de organização pessoal, e o Sendo Guia, com as indicações do mês de novembro (que eu não tinha conseguido escrever até agora). entenda tudo sobre a versão premium do Sendo Amadora aqui.
falando sobre o Sendo Organizada, quero marcar o nosso primeiro encontro online como um tutorial e bate-papo sobre organização no Notion! provavelmente acontecerá no final de Janeiro, a tempo de rolar um planejamento de ano-novo-vida-nova. se você é assinante, fique de olho! se ainda não é, considere se tornar.
se eu pudesse definir o Sendo Amadora em um termo, diria que essa newsletter é um shot de autoamor
o Sendo é um lugar para te encorajar a ser mais do que o seu trabalho e suas ocupações habituais. eu te ofereço uma conversa franca sobre o que significa ser feliz enquanto mulher no mundo de hoje, e compartilho as minhas estratégias de bem viver.
criatividade | hábitos saudáveis | autoconsciência | experiências pessoais
assinando você financia a criação desse conteúdo independente, livre de anúncios, feito com amor & tempo.
o que assinantes premium recebem:
(além das newsletters públicas do Sendo Amadora, e as curtinhas do Sendo Breve que já acontecem na inscrição gratuita)
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um guia mensal com o que estou lendo, ouvindo, consumindo, quem dei unfollow; lugares para ir em São Paulo, drinks, pratos e receitas; a marca daquele meu top de um-obro-só que vivem pedindo na DM e minhas referências (livros, cursos, coisa séria também cabe aqui).
sessões que entrarão em breve:
conforme o Sendo se torna sustentável, vou adicionando conteúdo exclusivo para assinantes (porque eles dão trabalho e precisam de cuidado, mas estou MUITO animada).
meu sistema de organização (hoje no Notion) para você copiar e colar e melhorar seu cotidiano. vou atualizar essa série a cada três meses com o que há de novo.
podcast semanal
encontros no zoom
encontros presenciais
exercício de escrita criativa
Nos vemos do outro lado!
eu acredito que todas as histórias tem vários começos, e vários fins.
o ano era 2002 e essa era uma mulher “fora do padrão”
https://www.nimh.nih.gov/health/publications/the-teen-brain-7-things-to-know#:~:text=The%20brain%20finishes%20developing%20and,prioritizing%2C%20and%20making%20good%20decisions.
Adorei a edição! E uma honra ser citada, obrigada!
ahhhh que honra foi e é te assistir vivendo e viver junto, amiga. que honra! (e meu deus, a Priscila Fantin! ser millenial é uma doideira, que isso!)