#23 romantizando o vazio criativo
porque o canal precisa estar livre e precisa comportar o fluxo.
em outra vida, já morando nesta cidade, eu aluguei “um quarto” no “apartamento” de uma “senhorinha”. *1
eu tinha uma escrivaninha ao lado de uma pequena sacada, onde fumava cigarros Vogue. a escrivaninha ficava encostada em uma parede onde eu colei, com durex, algumas imagens de que gostava. a Marilyn Monroe ao lado da frase “the best is yet to come”. a Cassie de Skins*2, ao lado de “all inspiration, no motivation”.
nessa época, eu era constantemente acompanhada pelas musas e pelos elementais que inspiram a arte. eu era uma supernova de ideias e ímpeto de expressão. eu era uma entidade de paixão e ambição possuindo um corpinho de 45 quilos. e eu era muito, muito ansiosa.
eu confundia estar “motivada” com estar à beira de um colapso que só se dissolvia criativamente: no desenho, na colagem, na escrita (ou na pausa para o cigarro com o som no talo no meu Ipod nano) (que saudade). quando essa ansiedade não acompanhava minhas inspirações, eu quase sufocava. eu ficava à espera dela. eu não sabia canalizar minha criatividade de nenhuma outra forma além de em cima da hora, de maneira autodestrutiva e completamente maluca.
não estar nessa corrente que me levava era como ser traída. all inspiration, no motivation.
comecei a chamar esses momentos de “natural high” quando um então namorado me disse que só se sentia assim quando usava drogas (as que eu mais detestava que ele usasse, a propósito). foi só quando comecei a observar o próprio movimento da minha criatividade e resolvi refletir sobre isso nos meus trabalhos acadêmicos que uma professora, fenomenóloga*3, me fez entender que era ansiedade. foi também a primeira professora que me fez ver que eu podia escrever.
eu estava no melhor lugar que eu poderia estar naquele momento. com o pedido constante para criar mais e mais, e melhor e melhor. eu tinha uma vazão para a ansiedade, e também para a minha inspiração.
mas anos “high on art” começaram a deteriorar meu emocional, e vocês conhecem essa história. eu tranquei a faculdade, procurei um emprego e fui me fazer perguntas gigantes.
por que estou aqui?
para quê (sendo mais precisa)?
por que me sinto assim?
e por que só crio se estiver assim?
eu já achei que a criatividade tinha me abandonado, porque eu tinha desistido de viver dela quando encerrei meu caso com a moda. eu a reencontrei quando comecei a trabalhar no digital, em um novo lugar de mim.
chegamos ali, no final de 2024. a ansiedade controlada. recuperada de um burnout. ao mesmo tempo “no mesmo lugar de antes” com minha força, meu intelecto e minhas ideias, mas em um lugar muito diferente emocionalmente, com tudo o que aprendi nos últimos 5 anos.
é muito raro que aconteça, mas, por algumas semanas, eu perdi a inspiração para escrever. não o ímpeto, nem o tesão, nem a capacidade. mas a inspiração, o toque da musa. assim como perder um orgasmo, às vezes não tem volta. eu perdi o fio da meada que vinha me levando tão deliciosamente. ainda tinha alguns esboços para as edições do final de 2024, mas depois... vazio. lidar com a falta de motivação eu aprendi. mas seguir desinspirada foi uma viagem completamente nova.
eu percebi o quanto preciso apreciar minha capacidade de entrar em contato com os deuses — o quanto esse contato se reflete em tudo o que faço, das coisas mais simples, como fazer o jantar, até projetos como o Sendo Amadora. eu não posso dar isso por garantido. é preciso alimentar, cultivar, cultuar essa força criativa.
foram 6 semanas em que observei, com uma recém-adquirida calma, o que acontece quando a inspiração some. tomei nota para dividir com vocês (porque sabia que ela voltaria):
não entre em pânico. a criatividade, aparentemente, não gosta de pânico.
não olhe o que os outros estão fazendo. não porque você vai sentir que seu trabalho é ruim, mas porque vai sentir que o trabalho de TODO MUNDO é ruim (only boring people are bored).
procure pelas faíscas, pelas correntinhas de ar que entram sutilmente, pelas memórias e por algo que nasce no estômago.
em último caso, saia para beber. saia com alguém novo. saia da rotina. saia daí. se você não tem nada para dizer, procure uma encrenca.
assim eu passei o último mês e meio. sem forçar produzir algo, mas escrevendo sem escrever — escrevendo com a minha vida e com as observações sobre o próprio processo.
sinto que esse vazio criativo foi parte essencial da minha recuperação. como se eu precisasse apagar os registros de navegação dos sites mentais por onde passei nesses últimos anos quando precisava criar algo. a aba estava aberta, mas eu precisava aprender a buscar novamente. o que, agora, faz todo o sentido.
uma das coisas que eu acreditava ser totalmente desinteressante e desnecessária nesse projeto era escrever sobre escrever. de onde veio essa crença? talvez do meu bode com os perfis de Instagram dedicados a falar sobre o Instagram. agora, do outro lado, vejo como isso não é a mesma coisa. eu mesma passo muito tempo refletindo sobre artigos que li sobre escrever artigos e vasculhando a rotina de escrita de escritores que admiro.
eis o que Liz Gilbert diz em seu livro A Grande Magia:
Acredito que nosso planeta é habitado não apenas por animais, plantas, bactérias e vírus, mas também por ideias. Estas são uma forma de vida energética, incorpórea. São completamente separadas de nós, mas capazes de interagir conosco — ainda que de um modo estranho. As ideias não têm um corpo material, mas têm consciência e, certamente, têm vontade própria. São movidas por um só impulso: o de se manifestar. E a única maneira pela qual uma ideia pode se manifestar em nosso mundo é por meio da colaboração com um parceiro humano. Ela só pode ser escoltada do nível do etéreo para o reino da realidade através dos esforços de um humano.
Portanto, as ideias passam a eternidade rodopiando a nossa volta, buscando parceiros humanos disponíveis e receptivos. (Estou falando aqui de todo tipo de ideia: artística, científica, industrial, comercial, ética, religiosa, política.) Quando uma ideia acredita que encontrou alguém — digamos, você — que talvez possa trazê-la para o mundo, ela lhe faz uma visita. Tenta chamar sua atenção. Na maior parte das vezes, você não percebe, provavelmente porque está tão consumido pelos próprios dramas, ansiedades, distrações, inseguranças e obrigações, que não está receptivo à inspiração. Talvez não note porque está assistindo à TV, fazendo compras, remoendo a raiva que sente de alguém, ponderando seus erros e fracassos ou simplesmente muito ocupado. A ideia tenta fazer sinal para você parar (talvez por alguns minutos, talvez por alguns meses, talvez até por alguns anos), mas, quando finalmente percebe que você está alheio à mensagem, passa para outra pessoa.
Contudo, às vezes — em ocasiões raras, porém magníficas —, chega um dia em que você está aberto e relaxado o suficiente para de fato receber algo. Talvez você tenha baixado um pouco a guarda e esteja menos ansioso, e então a mágica consegue se infiltrar. A ideia, sentindo sua abertura, começa a trabalhar em você. Envia os sinais de inspiração universais, tanto físicos quanto emocionais (os calafrios nos braços e na nuca, o embrulho no estômago, os pensamentos agitados, aquela sensação de estar se apaixonando ou sendo dominado por uma obsessão). A ideia organiza coincidências e portentos para você esbarrar pelo caminho, para manter seu interesse aguçado. Você começa a perceber todo tipo de sinal a levá-lo em direção a ela. Tudo o que você vê, toca e faz o lembra da ideia. Ela acorda você no meio da noite e o distrai de sua rotina diária. Não deixa você em paz até ter toda a sua atenção.
Então, em um momento tranquilo, ela pergunta: “Quer trabalhar comigo?”.
lembrei ontem desse trecho enquanto assistia a uma entrevista em que Will.I.Am falava sobre a rixa entre Michael Jackson e Prince. Michael chegou a se levantar no meio da madrugada para gravar uma ideia assim que ela surgiu, temendo que “as musas” resolvessem entregá-la ao Prince caso ele não agisse rápido. eu, virginiana, entendo o kingo.
eu lembro exatamente da sensação antes de abrir minha conta no Substack. “acho que estou começando uma newsletter”, pensei, quase como se previsse o futuro. é assim que as ideias mais gostosas vêm: como uma fofoca do meu eu maior. eu estava lendo com calma, no solzinho de uma manhã de outono, romantizando a vida sem me alienar dela — exato, essa é a descrição e definição do Sendo. foi a magia me perguntando “quer trabalhar comigo, Ananda?”
há tempos eu pedia à deusa que me devolvesse um lugar onde eu pudesse verter o que sou e deixar que as pessoas apreciassem o que transbordasse dali. era assim que eu me sentia com a moda: não precisava explicar, as pessoas podiam absorver o que fizesse sentido para elas, daquilo que vinha de dentro de mim.
mas, naquela época, eu tinha um canal definido para a criatividade fluir. eram os cadernos de processo criativo que eu precisava apresentar, as estampas que eu criava, os 8 a 16 croquis, o painel de conceito, o release, a cartela de cores.
o Substack é quase como esse canal. mas, hoje, a liberdade criativa que eu tenho é tanta que, às vezes, me perco. e é aqui onde quero chegar.
minha analista disse que esse percurso foi imenso. para mim, pareceu um passe de mágica. um dia, simplesmente, acordei aqui, em outro lugar.
“não podemos olhar para nossas feridas para sempre.” amanheci com essa frase na cabeça.
o meu plano inicial para o Sendo ficou pequeno demais para o fluxo criativo que preciso deixar seguir. e, por isso, ficou claro por que não tive inspiração logo depois de me sentir forte e obstinada novamente. quando abri esse espaço, eu queria monetizar minha criatividade, sim, mas de uma forma mais livre do que na minha empresa. e, para ser criativa e livre, eu preciso — surpresa! — ser criativa e livre.
embora essa newsletter já tenha vivido muitas reformulações (e eu sinto muito, mas vocês estão lendo alguém com Plutão no ascendente em Escorpião), sei que mortes e vidas continuarão a acontecer. mas foi permitindo essas pequenas mortes que cheguei até aqui, onde, finalmente, sinto que o Sendo Amadora está se encaixando na minha vida e entrando em uma sinergia com tudo o que crio.
enquanto escrevo esta edição, sinto aquilo. aquilo que a Liz diz. acho que estou começando algo novo, mais uma vez, no futuro. e não vou deixar passar.
o que quero deixar hoje é um convite: observe aquilo que não está fluindo. nem sempre significa o fim, ou uma falta de propósito, ou um “sinal” de que você está no caminho errado. talvez não esteja fluindo porque o canal por onde você tenta passar ficou pequeno demais para o que você quer fazer, para o que você quer criar, para o que a sua alma pede.
hello amadoras! feliz 2025!
eu estou sentindo uma vibe realmente boa neste ano, mesmo em contraste com tantas coisas acontecendo. uma vez me disseram que sou o tipo de pessoa que floresce no caos. lembro de ouvir isso com um certo pesar. hoje, faz muito sentido.
tenho me mantido firme no propósito de me afastar emocionalmente daquilo que pode drenar minha energia, que pode tirar minha potência de agir. claro, não consigo fechar os olhos, nem fingir que não estou pressentindo tempos conturbados nos próximos anos.
mas este trechinho não é sobre o caos, porque sei que você, que me lê, é inteligente e já está ciente das crises do mundo.
eu só quero te contar que tem dado certo. depois de todos esses anos, acredito ter encontrado um lugar de onde consigo ser empática sem me martirizar. onde posso ser afetada sem ser abalada. e, se eu puder mostrar como fazer isso, eu mostrarei.
porque, mais do que nunca, a esperança é uma teimosia necessária, e o otimismo, uma ferramenta de criação de futuro. estou na linha de frente com drinks, margaridas, Bad Bunny, tríceps e festinhas para receber vocês.
vamos mais que sobreviver: vamos viver bonito e manter nossa potência de agir.
até semana que vem. se mora em São Paulo, cheque a previsão do tempo antes de sair de casa e não esqueça o protetor solar.
se você ainda não ouviu o álbum do Bad Bunny, "Debí tirar más fotos", faça um favor a si mesma e veja pelo menos o curta, por gentileza. esse álbum entrega raízes, pesquisa, safadeza, “que saudade da minha ex”, orgulho latino, perreo, anticolonialismo e estética. sinceramente, não sei o que mais uma garota solteira de 30 anos poderia querer. talvez o próprio Benito, si le gusta.
achado da internet da semana:
#2 outono, fazer macarrão como quem vive os afetos e Barcelona
6 minutos de pausa pra leitura no seu dia. estou devolvendo a concentração pro seu cérebro pós-internet. de nada.
lê-se: pagava 75% do meu salário de estagiária por um espaço dividido por uma parede improvisada — bem feita, assumo — na kitnet de uma mulher muito, muito louca. e este ano vou falar muito sobre essa época porque ela está vindo em flashbacks, e 2025 está parecendo muito o começo dos 10's.
Euphoria não assusta quem foi criada na internet a base de Skins (:
Um psicólogo fenomenológico é um profissional que atua na terapia fenomenológico-existencial, que tem como objetivo ajudar os pacientes a entender o sentido da vida.
Já faz tempo que eu ensaio pra começar minha newsletter, e te ler dá um gás pra embarcar nessa viagem. Obrigada por isso!
Ler vc me trouxe uma puta reflexão sobre o que faço achando que to num flow e só estou libertando a ansiedade. Gratidão imensa por abrir o coração…e eu que nunca passo por aqui, tô saindo flutuando com as ideias.