#26 mulheres que guardam domingos & mulheres que guardam as festas
você tem que lutar pelo seu direito de festejar.
minha avó veio pelo corredor com dificuldade, mas apanhou minha mão e, com força, colocou 30 reais nela. dessa vez, não era para o sorvete. "você vai nessa festa, seu tio vai te levar". tudo orquestrado enquanto minha mãe e eu tínhamos mais uma briga — que viria a ser uma constante pelos próximos anos.
vejo, entre lágrimas, minha mãe furiosa vindo da sala como um touro. "ela é minha filha, e se eu disse que ela não vai, ela não vai".
"se ela é sua filha, eu sou sua mãe, e eu estou dizendo que ela vai".
minha mãe ficou muda, sem ar, o sangue todo no pescoço. a velha deu a carteirada do "vó é mãe duas vezes". ela também era minha madrinha de batismo. eu, triplamente, tinha o dever de parar de chorar e colocar minha blusinha nova. ela demandava que eu fosse ao baile do Havaí e usou toda a sua autoridade para isso.
então, aquela senhorinha que sofreu tanto, nada doce, com suas unhas vermelhas gigantes e acessórios pesados demais, minha amada vó Dalina — que era amiga da dona do bar, que marcava seus pratos e copos com um pinguinho de esmalte vermelho (marca registrada) no fundo pra todo mundo saber que eram dela, que fumava feito uma chaminé e bebia cerveja e café demais — me disse o que eu nunca vou esquecer: "a sua mãe é uma chata".
as mulheres que não se dão ao desfrute
quando meu avô morreu, minha avó tinha apenas 41 anos. quando eles se casaram, ela tinha 13. pelas histórias, meu avô nunca a levava nas festas, muito menos a deixava ir, era muito ciumento. aparentemente, minha avó era uma mulher bem bonita, além de mais jovem. ela podia trabalhar, ela podia servir, ela devia procriar. mas a alegria não estava no planejamento. ele podia beber no bar, ela podia cantar na igreja.
então, viúva, ela começou a frequentar bailinhos da terceira idade. de criança, passou a mulher adulta muito rápido. como viúva, a ela restaram esses bailes, que eram coisas inocentes. ela ia com amigas, dançava forró com um senhorzinho ou outro. liberdade que minha mãe, de 22 anos, julgava descabida. nem a filha mais velha, nem a mais nova — apenas aquela que tinha se aliançado com o pai e estava ali para perpetuar o julgamento.
imagine você: ter casado com 13 anos de idade, ter tido 11 filhos, criado 8, perdido um marido (que não era o melhor marido do mundo, mas era o seu), ter trabalhado na roça, costurado camisas, aguentado desaforos por toda uma vida. e ter uma fedelha de 22 anos te esperando de braços cruzados e te recebendo com "isso é hora de uma mulher da sua idade chegar em casa?".
é claro que minha mãe nunca foi a uma festa que não fosse da igreja.
sair à noite, para mim, era um tipo de declaração de independência. eu tinha 16 anos, sapatos novos e meus próprios 20 reais (comecei a fazer meu pé de meia aos 13, vendendo bijuterias que fazia). nas festas, quase ninguém sabia quem eu era (a filha da Dirce, que canta na igreja, ou do Kazuo, da Suzuki). eu era uma garota como todas as outras. eu era o sonho da minha avó, que, nessa idade, já tinha 3 filhos.
hoje eu entendo que, quando eu, armada com lápis de olho (e acessórios pesados demais), subia no meu saltinho para ir para a balada, eu levava comigo minha avó e talvez outras ancestrais.
era uma prática espiritual pra mim, e eu tentei, sem sucesso, explicar para minha mãe catequista o que eu sentia ali. eu não entrei na onda rave-ayahuasca-universo paralelo (basicamente porque não gosto da estética e não consigo ficar onde as pessoas estão usando drogas), mas eu poderia, tamanha era minha relação com aquelas pistinhas de dança.
me arrumava apenas pra ser vista na fila e numa ocasional ida ao bar. muito ocasional — eu não tinha dinheiro pra ficar bebendo assim. raramente tinha um romance de balada também. não era pra mostrar meu look, não era pra me entorpecer, não era pra conhecer gente. então, qual era o centro da minha prática espiritual?
o escuro, as luzes e dançar. sair a tempo de assistir Poderoso Chefão na sessão coruja. ou, quando perdia a hora, comer pastel na feira, em cima do capô do carro de alguém, sabendo que, quando chegasse em casa com o dia raiando, minha mãe (que, em algum lugar, era a mesma chata de 22 anos) me esperaria de braços cruzados e me perguntaria se aquela era “hora de uma mocinha da minha idade chegar em casa”. eu daria risada e colocaria o pão que comprei pra tirar sarro dela (“não estou chegando agora, mãe! só saí pra comprar pão” — aprendi com um dos meus tios) na mesa, empoderada de algum jeito pela véia Dalina — sou uma fruta que caiu perto da árvore mais antiga da família.
por isso, hoje, com 32 anos, algo em mim tem se incomodado com as noites que escolho ficar em casa. agora que tenho todas as possibilidades e moro no centro do mundo, me enfio em casa mais do que nunca. e não porque tem algo imperdível para assistir ou porque vou receber alguém. é um "estar cansada" que não é sobre cansaço, é sobre comodismo.
claro, ter sido uma party girl dos 16 aos 26 (longa carreira, para uma millennial) me deixa muito tranquila sobre o que "estou perdendo". eu aproveitei essa parte da minha juventude, eu estava em todo lugar e, mesmo trabalhando muito, me diverti.
mas essa é uma coisa que aprendi sobre se divertir: a diversão não é cumulativa. eu posso ter uma novela de histórias e loucuras pra contar e, ainda assim, continuo precisando me divertir e... festejar.
quando eu saía e demorava pra voltar, minha mãe perguntava: "mas duas horas de festa não é o suficiente?" (típica conclusão de quem odeia socializar e já chega querendo ir embora). percebo que construí essa crença sobre a vida adulta. 10 anos de festa não é o suficiente? acho que não.
será que isso é uma (velha) nova forma de resistência?
algo em estar cronicamente online cria essa impressão de que vivemos em uma grande rave. música, gente bonita, risos, dopamina — tudo na palma da sua mão. será que seu cérebro ainda sabe a diferença entre estar no meio das pessoas e viver essa simulação de socialização? nos sentimos, como sociedade, superestimulados diante de um retângulo de luz e, por conta disso, não temos energia nem paciência para estar com as pessoas. vivemos nas nossas bolhas, recebendo uma curadoria de coisas com as quais já concordamos ou amamos odiar. economizamos dinheiro e deixamos de produzir histórias.
e olha, eu te entendo. eu sinto a felicidade de estar de fora*1 de muita coisa, principalmente quando essa coisa é uma tendência forte. é nosso espírito rebelde e adolescente, bom demais pra ser mainstream. eu sinto também o alívio de chegar no meu apartamento quietinha, o conforto de uma série que já assisti várias vezes, o silêncio. mas vamos olhar para o barulho.
o barulho que vivemos hoje raramente é o barulho caótico da vida que escolhemos. esse barulho interno do qual estamos sempre tentando fugir, sabe? ele é um barulho de comparação e pressa, não do medo inevitável que vem quando estamos nos arriscando a viver uma vida. é um barulho cheio de “e se?”, de riscos calculados, de vozes sensatas de pessoas que nos explicam o mundo e nos dão a ideia de que precisamos viver de uma forma exemplar.
parte desse barulho é o capitalismo, e nem eu nem você vamos fugir. para você, o cansaço pode vir do ônibus lotado ou do escritório abarrotado de conversa fiada. para mim, é o burburinho das redes sociais e das estratégias que compõem parte do meu trabalho. e para ambas, provavelmente, vem dos anos de vida adulta nesse sistema. tudo bem, essa é nossa história.
mas a gente precisa lutar pelo nosso direito de festejar.*2
as músicas das décadas passadas eram criadas por movimentos que nasciam das festas, não para performar bem no tiktok — não eram puramente branding, eram causas, emoções, histórias. não eram feitas para vender uma vibe, elas ERAM a vibe. estavam ligadas à moda, à comida, às interações entre pessoas que criariam o que chamamos de cool. minha geração foi exposta (no tumblr) à carta de amor que o Alex Turner escreveu para a Alexa Chung, e isso é uma histórinha besta dos anos 2010 que eu tenho certeza que mudou uma geração inteira de pessoas, gostando elas de Arctic Monkeys ou não.
Minha boca não parou de falar sobre você desde que você a beijou. A ideia de que você a possa beijar mais uma vez está grudada no meu cérebro, que não parou de pensar em você desde, bom, desde antes de qualquer beijo. E agora, a expectativa desses beijos me pegam como quando você escorrega na escada e um dos degraus te atinge bem no meio das costas. A ideia deles continuando pelo que tradicionalmente seria o assustador “para sempre” me entusiasma de uma forma que eu não conhecia.3
e digo tudo isso porque, um dia desses, eu me olhei no espelho e a voz da dona Idalina, que mora em mim, falou sem pudor nenhum: “um dia você realmente vai ter 75 anos de idade”. e eu entendi. não é sobre quantos anos eu tenho, é sobre as fases da vida e o que eu vou buscar viver em cada uma delas. em alguns momentos da vida, eu realmente vou precisar me recolher. acabamos de sair de um grande recolhimento forçado, onde eu abracei um lado mais caseiro e calmo, e amo isso, mas brincar de “jovem senhora” passou dos limites. eu, que sempre tive prana*4 para celebrar e ser livre, não posso deixar de me colocar no mundo. o mundo que eu acredito precisa que eu saia de dentro da minha casa (da minha cabeça, das minhas paranoias) e vá fazer algo que não é conveniente, prático, produtivo ou controlado.
por isso, te convido a abrir uma garrafa de vinho que seja, afastar o sofá e chamar umas pessoas queridas para dançar no meio da sua sala — por mim, pelas mulheres que não podiam se dar ao desfrute e por um mundo feito de encontros e caos.
hello, amadora!
acabo de chegar do Rio, de onde nascem minhas melhores ideias. eu estava em mais um dia vagando aleatoriamente quando resolvi entrar para tomar um cafezinho no Zazá Bistrô da Livraria da Travessa (já me encomendaram na DM meu roteiro do Rio de Janeiro, e vou produzir esse conteúdo para vocês aqui na newsletter). estava ali no meu habitat natural (comida, café, livros) e BAM — várias respostas sobre o Sendo Amadora começaram a pipocar na minha mente.
desde o ano passado, já tinha decidido que essa newsletter seria 95% fechada, mas ainda estava tentando entender como fazer isso de um jeito que fosse natural. porque, sendo bem honesta, não é só sobre colocar um paywall entre eu e quem me lê. a internet tem se tornado um lugar estranho para quem cria, e eu quero sentir que esse espaço é seguro para trazer textos mais íntimos, além de reflexões e ideias que não têm espaço nas redes sociais.
também acredito que o trabalho feito com amor & tempo merece ser remunerado — e o Sendo Amadora tem esse nome porque eu falo do que amo, não porque não quero me dedicar a ele como um trabalho. percebi que a melhor forma de fazer isso acontecer era reformular toda a estrutura da newsletter para que eu me sentisse mais livre para criar e, ao mesmo tempo, para que quem está aqui recebesse algo realmente especial.
então, só adiantando o assunto: nas próximas semanas, vou liberar algumas edições como uma amostra do que será o conteúdo premium. mesma energia, mesma identidade, mas com uma entrega que faz mais sentido. e, na próxima semana, reabro as assinaturas com um valor especial que vou segurar pelo máximo de tempo possível — porque quero que quem se identifica com o Sendo possa estar junto nessa nova fase.
então, fica de olho no seu inbox. te conto mais semana que vem.
sim, essa edição veio no pré-carnaval para te incentivar (e tentar me animar. não estou animada, não).
meu xingamento preferido tem sido “sonso” e eu tive muitas oportunidades de usar nos últimos dias. a forma de xingar usada por um momento, marca aquele momento pra mim (já foi “falso”, “abertasso”, “abobado” — sempre no masculino).
isso aqui me pegou demais:
“acabei de ver um vídeo no tiktok onde a mulher disse 'você realmente quer isso, ou você quer que outras pessoas vejam que você tem isso?’ e UAU! eu sinto que mais pessoas precisam se fazer essa pergunta, porque o que elas pensam que querem, não é o que elas querem. o que elas realmente desejam é aceitaçã”
JOMO é a sigla em inglês para "joy of missing out", que significa "alegria de perder" ou "alegria de ficar de fora". É um conceito que valoriza a vida offline e o prazer de se desconectar de redes sociais e dispositivos tecnológicos.
“você tem que lutar pelo seu direito de festejar”
https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/a-carta-perdida-de-alex-turner-para-alexa-chung,5979431e19877e71d814cd59f644facb9sk1fbll.html?utm_source=clipboard
energia vital
Não lembro porque abri meu email hj de manhã mas o primeiro que apareceu foi esse texto maravilhoso. Combinou tanto com meu coração, com meus pensamentos desde ontem...Se vc com 32 tem todas esses sentimentos sobre "aproveitar a vida", "sobre ter aproveitado", imagina eu com 42. Sinto que aproveitei muito...mas quero tanto celebrar, curtir, dançar, me arrumar...cansa...faço isso 2 ou 3x no máximo por mês...qdo dá...💰 e são tantas histórias boas...lembranças que vou sempre guardar. Obrigada por me apoiar...veio na hora certa! Vou sempre lembrar disso qdo a preguiça bater.
Essa newsletter bateu no lugar certo. Como alguém que nunca festejou e está chegando aos vinte com essa sensação de: "se eu não curto lugares com drogas, nem muito barulho, como eu faço pra estar fora de casa?" Ela veio como um chamado.
Além disso, ancestralidade, origem, é um valor meu. Então todas as decisões passam por esse filtro e pensar que as mulheres que vieram antes de mim não tiveram a oportunidade de escolha que eu tenho me "expõe " em um certo lugar, porquê o que me impede é só medo de experimentar coisas novas. Se eu quiser eu *posso* tentar. E essa possibilidade é uma vitória para todas nós.