decidi deixar essa edição aberta a todos. não sei quem precisa ler isso, mas se é você, fico feliz que ela possa chegar até a sua caixa de entrada.
tenho uma cicatriz na testa, que por algum motivo jamais me incomodou. mesmo sendo muito vaidosa, mesmo trabalhando com a minha imagem desde sempre. nunca tentei cobrir, nunca achei feia. ela é uma parte tão antiga de mim, que às vezes me esqueço que ela está ali, não exatamente no meio, mas um pouco pra direita. amo que me esqueço, porque amo me lembrar. não sou de reações muito explosivas, de entusiasmo reativo, sabe? isso tem mudado, mas no geral as emoções fazem um caminho engraçado dentro de mim, e muitas vezes se perdem no percurso. mas não nesse dia.
eu brincava escondida no quarto da minha batchan*1, com os chinelos do meu ditchan* que me foram entregues pra que eu não sujasse o chão recentemente encerado. o quarto era um mundo de coisas que eu não entendia, o oratório*2 com fotos em preto e branco, de parentes que não conheci. uma concha que minha batchan usava para depositar o fósforo depois de acender uma vela. o pires onde colocava uma xícara de café fresco, ou uma maçã, ou um moti*3. e o sino que, quando tocava, na minha imaginação, enchia o cômodo com os espíritos dos meus antepassados.
eu estava ali, bem acompanhada, sozinha, tocando as coisas com delicadeza pra que ninguém percebesse, quando ouvi o ronco da moto. muito longe. um pouco mais perto. perto. parando em frente à casa. o portão abre. meu coração dispara: meu pai.
nesses tempos, dos 4 aos 6 anos, eu passava os dias da semana com meus avós, e eventualmente meu pai conseguia escapar do trabalho pra almoçar com a gente. ou só passar por ali.
eu corri pra encontrar ele na cozinha, mas os chinelos não tinham tração no taco liso e reluzente. a próxima coisa que lembro é meu nariz no chão e o cheiro da cera. me levanto e sinto algo morno escorrendo da testa. em um segundo, olho pra cima e vejo os olhos arregalados do meu pai. “o que aconteceu???”
eu sabia: eu corri com o chinelo velho na cera nova e dei um jeito de cair de testa na quina do rodapé perigosamente rococó. na quina onde ele fazia uma ponta afiada.
eu não sabia: ao entender que meu pai chegava, contrariando toda a minha programação discreta e reservada de pequena lua em capricórnio, eu explodi em uma felicidade repentina e corri. eu mesma não poderia ter previsto minha reação. minhas pernas foram muito antes da minha timidez. minutos depois, o corte devidamente coberto por esparadrapo, as bochechas cobertas de lágrimas, os chinelos substituídos por havaianas, sentada no tanque eu disse a ele: “eu corri porque eu escutei você chegar e queria te ver". lembro do abraço abafado pela jaqueta de motoqueiro com cheiro de couro, cheiro de cigarro, cheiro de graxa e o cheiro que o Japão deixou pra sempre nele.
se muitas vezes eu senti a dor e o arrependimento pela minha postura em nossas inúmeras brigas, como se algo tivesse ficado congelado ali e elas definissem nossa história, recentemente eu decidi que o que definiria nossa relação seria esse momento. o barulho da moto, o amor transbordante, o cheiro de cigarro, a marca na testa pra sempre. se algo vai ficar congelado, é isso. paramos no tempo do riso depois daquela confissão: “eu corri porque eu escutei você chegar e queria te ver".
meu pai morreu quando eu tinha 21 anos. eu não falo muito dele, e acho que é porque ele não fez parte da minha vida adulta e eu me prendo pouco às memórias de infância. mas mais de uma década depois de deixar esse plano, ele é um pai muito presente: eu vejo ele em cada uma das coisas que faço.
pra senti-lo presente, na verdade, precisei amadurecer muito. precisei entrar na vida adulta pra apreciar de verdade tudo o que ele me deu. eu não tinha referência o suficiente para desfrutar do que ele podia me oferecer e foquei demais no que ele não podia. às vezes me arrependo, então lembro que eu era só uma criança e não sabia fazer diferente, e na maior parte do tempo eu sinto um orgulho engraçado de ser muito filha dele.
das muitas coisas que hoje eu encontro dentro de mim e que só tenho por conta dele, destaco duas:
a primeira é a confiança absoluta na minha capacidade de fazer qualquer coisa. não, meu pai nunca me disse “você consegue”. meu pai dizia “te vira” para todo pedido meu. depois ele debochava ou ralhava e corrigia o que sua “filhota” tivesse feito errado (importante dizer que eu pedia para o meu pai coisas muito difíceis, como moldar coisas na solda, ou construir coisas na madeira ). na minha cabeça, ele sabia fazer qualquer coisa e, com o que eu achava ser descaso — hoje eu acho um presente — ele me fez ser como ele, e eu sei fazer qualquer coisa. nenhuma tarefa desafiadora me desanima, e nenhuma tarefa muito fácil me interessa. isso pode ser um defeito, o que nos leva à segunda…
…aquele taurino não queria mudar. vez ou outra ele tentou, e em muitos aspectos eu queria que ele tivesse conseguido, talvez com isso ele ainda estivesse aqui. mas às vezes penso que tem algum tipo de honra, uma bem japonesa, de viver pouco, mas viver exatamente o que você acredita, sem tentar mudar quem você é. à parte toda a minha compreensão da diferença de socialização entre homens e mulheres, eu admiro isso profundamente. a aceitação que meu pai tinha dos próprios defeitos fazia minha convivência com ele ser turbulenta e, ao mesmo tempo, a mais pacífica de toda a minha vida. ele brigava comigo e, estranhamente, ao mesmo tempo não me “corrigia” — percebo como quem faz análise. batíamos de frente, certos da nossa natureza. brigávamos e reclamávamos e não mudávamos, e nunca mais me senti tão em paz com quem eu sou e com todos os meus defeitos quanto naquela presença. quando apontado algum traço que poderia ter polimento, ele dizia “é o defeito da madeira” — nenhuma explicação adicional.
eu hoje estou na busca de abraçar tão universalmente meus defeitos, aqueles que não vou mudar e com os quais só me resta conviver e fazer o melhor deles. busco não me corrigir. onde sou torta, melhor respeitar o trajeto do crescimento e criar com o que o material me permitir. eu acho que é o que ele me diria com muito menos palavras. isso me faz algo único. isso me faz filha dele.
e a cicatriz é o defeito da madeira que o amor que sinto colocou bem no meio da minha testa. no meio não, um pouco pra direita, porque isso também não devia ser perfeito. nenhuma das coisas preciosas da vida é.
ps: de todas as fases do luto, nos últimos anos estou em uma muito bonita: lembrar dele sem dor, só com um amor gigantesco e a expectativa positiva de um dia dividir um cigarro com ele no plano astral. te conto isso porque, se você perdeu alguém, talvez pense que a dor nunca vai embora. se nunca perdeu, pode achar que não vai sobreviver. da forma como eu aprendi naquele cômodo onde meus antepassados se reuniam para tomar café e comer moti, a morte abre uma nova relação. a morte é só uma coisa nova que todos nós vamos conhecer de muitas formas diferentes ao longo da vida. viver é mais importante. viver não é só o que nos resta, é nosso dever para com eles.
hello, amadora
espero que essa edição te encontre bem. recentemente eu fui tomada por um desejo de vida renovado. não sei. tenho tido vários pressentimentos e sentido que voltei a um estado onde as coincidências são sincronicidades, mais que mero acaso. e uma coisa engraçada sobre a sincronicidade e a intuição é que basta você notar uma, basta você não ignorar um sinal, e eles começam a despontar por todos os cantos. a vida não ficou um milímetro mais fácil, mas ela tem sido mais mágica. é o que consigo entender dela por ora. espero que a vida seja mágica com você. até a próxima.
#17 um homem para calar as vozes
esse email pode estar longo, clique aqui para ler no navegador, caso queira.
batchan (ばあちゃん) e jitchan (じいちゃん): formas carinhosas e informais de se referir à avó e ao avô, respectivamente, no idioma japonês.
oratório japonês: também chamado butsudan, é um altar doméstico presente em muitas casas japonesas, onde se colocam fotos dos antepassados e pequenas oferendas (comida, incenso, flores) como forma de respeito, conexão espiritual e continuidade dos laços familiares.
moti: doce tradicional japonês feito com arroz glutinoso socado até virar uma massa elástica; é símbolo de prosperidade e costuma ser oferecido em celebrações ou rituais espirituais.
amanhã vai fazer um mês que meu pai faleceu. obrigada por esse texto lindo.
gratidão por esse texto nan... eu tenho uma relação muito delicada com o meu pai, ao mesmo tempo que amo imensamente ele sinto vergonha de algumas atitudes dele, em um momento estamos dizendo que nos amamos em outro estamos discutindo ou abafando tudo que gostaríamos de dizer... me sinto igual a ele em tantos aspectos e tão diferente em outros... seu texto me faz querer valorizar cada momento juntos, mesmo aqueles difíceis de engolir, mesmo aqueles que me fazem chorar copiosamente, e aqueles que me fazem encher e transbordar o coração de amor