esse email pode estar longo, clique aqui para ler no navegador, caso queira.
eu acho que estava sentada no sofá. possivelmente equilibrando uma embalagem de delivery com comida coreana*1 entre os joelhos, provavelmente re-assistindo uma série ("Friends", talvez?). acredito que tenha sido no período da tarde, antes do sol se pôr, mas depois do meio-dia, a luz entrando até o meio da sala e me fazendo apertar os olhos e criar rugas. se não me engano, eu usava um conjuntinho de shorts e blusa de moletom amarelinhos (ambos com pingos perpétuos de molho sriracha) e meias de pares diferentes. e aposto que tinha o celular ao meu lado, tela desbloqueada, um vídeo do Tiktok pausado.
uma coisa sobre o tédio é que ele “mescla” os dias, as ocasiões. tudo fica igual, nada é marcante. ele entra como uma névoa pelas frestas, pelas telas, pelos pacotes da Amazon que chegam com coisas inúteis. por isso, eu não sei dizer ao certo quando entendi que estava definhando de tédio aqui.
aviso: vai ter bastante “problema de classe média” nessa edição — embora eu não saiba onde fico nesse gráfico, “empreendedora” já diz muito. e me recuso a usar o termo “white people problem” porque, bem, eu não sou branca. mas cabe no conceito. de resto, desfrute.
sempre defendi que em vez de sair da zona de conforto, precisamos aumentá-la. aumentar a quantidade de coisas com as quais conseguimos lidar sem muito desafio. hoje percebo que, se por um lado (o profissional, principalmente) acredito que essa postura é importante, por outro, o conforto que aumenta também é um tipo de porta que se fecha.
(ouvir Maria River Red depois de tudo o que sabemos hoje em dia é uma outra coisa, né?)
dia desses li uma edição da newsletter da
onde ela diz:“O problema de viver uma vida mais tranquila é que, se você não tomar muito cuidado, ela pode ficar cada vez menor, se fechando lentamente em volta de você. Na verdade, é preciso muito mais energia para agir quando você não é levado por uma energia externa, seja ela de pessoas, de uma cidade, de uma equipe, de crianças, seja ela qual for. E quanto menos você faz, mais cada ação é um esforço enorme."
eu senti cada palavra desse parágrafo. porque eu posso sentir o conforto da minha vida tranquila se tornando um cômodo cada vez menor. ou talvez eu é que tenha crescido demais nesse meio tempo*2, e já não caiba mais aqui. de fato, pouca coisa me abala atualmente, estou protegida pelas redes de segurança que construí à minha volta. mas se eu olhar com carinho para a situação atual, pouca coisa me estimula também.
me sinto apertada entre todas as facilidades. é com certeza uma questão “dopamínica", mas de solução menos simples que fazer um “dopamine detox”*3.
me mudei para o apartamento onde moro no final do ano de 2020.
enquanto todos se sentiam mais otimistas em relação à pandemia, eu tinha certeza que ainda teríamos muito a enfrentar (incluindo as próximas eleições presidenciais). e eu busquei um lugar onde eu pudesse respirar, descansar, tomar sol e, sim, trabalhar.
eu estava em busca de um refúgio caso tudo viesse a ser o caos que algo dentro de mim dizia que seria. não sei como foi para você, mas em 2021, além de termos mais algumas temporadas de lockdown, eu senti os impactos do primeiro ano de pandemia muito intensamente na minha saúde mental. peguei covid em 2022, ficando um mês inteiro doente. e esse apartamento teve um papel muito importante na minha recuperação de tudo isso (escreverei sobre em breve).
então, esses 75m2 nesse bairro que eu achava nobre demais pra mim se tornaram o meu “distrito 13”. se você leu ou assistiu “Jogos Vorazes”*4, sabe do que estou falando. se não assistiu, te explico o conceito.
repare como na maior parte das histórias que viram filme, o herói precisa de um tipo de “reabilitação” — a “aproximação da caverna secreta” na jornada do herói*5 de Campbell. em algum momento depois de uma luta ou grande desafio (e, geralmente, antes de um perrengue ainda maior), ele é acolhido por uma família, se esconde em uma ilha, é um refugiado em outra nação, fica internado em um hospital (quando não em coma), passa um tempo em um lugar inóspito. o herói se recolhe.
intuitivamente, foi o que fiz. encontrei o meu distrito 13 (lugar onde os heróis de Jogos Vorazes se escondem em uma parte da história), relaxei nele e comecei a me recuperar.

eu nunca tive conforto material, financeiro, e hoje entendo que tive pouco acolhimento emocional também. eu apenas não conhecia isso, era como uma língua estrangeira. minha língua materna (de lua em capricórnio*6) me ensinou a buscar a melhor opção, a mais foda, a com melhores possibilidades, mas nunca a mais confortável. posso te afirmar que até os 27 anos de idade, eu só me sentia leve e relaxada e em paz quando completamente sozinha. era quando, além de não ter o estímulo de outra pessoa (e escolher o conforto dela em detrimento ao meu), eu me permitia ser o que eu chamava de "desleixada".
por isso, uma vez dado o mínimo de possibilidades de soltar um pouco essa exigência, minha mente, corpo e campo emocional (exaustos) mergulharam nesse moderno hedonismo*7, e conforto se tornou comodismo.
parecia uma vida de sonho, o American Dream, o ápice das vantagens da atualidade
trabalhar de casa, de pijama. fazer minhas horas. trabalhar com um tema que gosto, que é útil para as pessoas, ser admirada por isso. estar na posição de quem tem as respostas e, consequentemente, “a razão” (risos). trabalhar apenas com mulheres, empregar amigas. ser a criadora de conteúdo que menos cria conteúdo na internet e, portanto, menos lida com números, hates e as injustiças do algoritmo. nunca mais pegar transporte público, pedir delivery 80% das refeições (muitas vezes, já começava pelo café da manhã), dormir muito cedo (não lidar com a ansiedade das noites sem amigos), acordar antes de todo mundo (não lidar com o estresse de mensagens matinais). a bolha do meu posicionamento político, a sensação de estar “do lado certo da história”. assistir as mesmas séries, sabendo o que vai acontecer, sem esperar uma semana pelo próximo capítulo. ler no kindle. fones com cancelamento de ruído. comprar tudo pela internet apenas depois de ler os reviews. aplicativos de paquera, “conversantes”, não mais “ficantes” — hábitos e posturas que se cristalizaram na pandemia e permaneceram até aqui.
essa era a vida que eu queria. essa foi a vida que me dei.
eu mergulhei no conforto como quem se coloca em uma banheira de hidromassagem depois de uma sessão de treino puxado. minha analista diz que cheguei no primeiro “acampamento base”, e acho que fiz certo em descansar da subida ali enquanto pude. e com “pude” eu quero dizer, “enquanto o cheiro de lavanda e a falta de conflito não se tornaram extremamente entediantes, tirando minha alegria de viver”.
percebo como algumas coisas só encontram solo fértil pra crescer quando estamos calmos, centrados, com abundância de recursos. não tinha experimentado isso na vida, e agora eu entendo. mas venho percebendo que essa fertilidade chega em um platô e, como na natureza, a monocultura*8 empobrece o solo. é preciso deixar o terreno descansar até mesmo do descanso. tempos de recuperação, tempos de desafio, tempos de vazio.
eu prospero mesmo — cresço e revelo partes de mim — quando desafiada. é quando dou meus maiores saltos: na falta de condições ideais. quando alguém me pergunta "como fiz tal coisa” “como cheguei até ali” eu só penso “porque sei lidar com o que não é ideal e pouca gente sabe”. talvez esse seja meu único diferencial. e enquanto eu gosto dos lugares (internos e externos) que conquistei, e não vá “regredir” (não vou mudar o estilo de vida que tanto batalhei pra criar), sinto que chegou a hora de olhar pros próximos desafios, com novas condições terríveis e no pior timing possível. como sempre fiz (:
como todo ser vivo, eu preciso da quantidade adequada de estabilidade e previsibilidade que me permita ter saúde mental, claro. mas o sossego não pode ser o destino; no máximo ele pode ser o agradável assento de couro do veículo que usamos pra chegar a algum lugar.
para encerrar
o que entendi sobre o conforto é que ele simplesmente não é divertido. ele é tudo, menos diversão. e diversão é diferente de entretenimento, de distração, de muita coisa que a gente acha que é. o prazer é o que faz as espécies evoluírem, e o prazer pede um nível de atrito que vem junto com desconforto.
acho que em um mundo onde estamos sempre sendo desafiados, sempre correndo pela nossa sobrevivência, é natural que um dos nossos desejos seja uma vida confortável. e eu me permiti ficar aqui por um tempo, quase esqueci que a vida nem sempre foi assim, que não preciso de tudo tão fácil, tão na palma da minha mão. quase me esqueci que não sou tão frágil assim. que não fui criada de pantufa no carpete. e se hoje te conto toda essa história, é porque eu queria ter ouvido isso antes, e demorei para perceber que o conforto e a previsibilidade estão tirando o melhor de mim, o meu caos.
hoje minha analista disse: “a vida acontece quando a gente não sabe, Ananda”. controlar não é viver, e dói entender isso quando ter tudo sob controle é sua meta (como já foi a minha). mas quando eu controlo eu bloqueio o fluxo da própria vida, eu a impeço de acontecer. e conforto tem a ver com controle.
acho que a vida acontece quando a gente não sabe com certeza o que vai acontecer e tem que estar presente em cada passo, decidindo o próximo conforme o anterior. algumas pessoas chamam isso de criatividade.
eu só sei que chegou a hora de sair da caverna e deixar o distrito 13 para trás, e que não faço ideia de por onde começar.
PS: o primeiro rascunho dessa edição foi escrito em um dia de TPM, alguns ciclos atrás. resolvi editá-la e postar também de TPM, para manter o elemento dramático, você sentiu?
PS2: quando estava editando essa edição, a
escreveu uma brilhante análise no Desejante , da qual extraí essa parte:“assistir essas séries e me lembrar da adolescência é delicinha e eu jamais deixarei de maratonar Gilmore Girls uma vez ao ano. mas para além de me trazer conforto, a arte precisa voltar a me trazer desassossego.”
vale a pena a leitura, e conversa com o que trago nessa edição, delicie-se.
fiquei particularmente orgulhosa dessa edição aqui da Faxina anual, no Substack da Firma.
você sabia que “micro expressões” são importantíssimas para criar conexão entre as pessoas, incluindo tesão? considere isso antes de fazer botox, não quero fazer terrorismo, só estou chocada com essa informação. e antes que você ache que minha carinha é genética: apenas 50% é genética. de resto eu sou a maior evangelista de uma maravilha chamada Ultraformer. é perfeito, o efeito não se desfaz e ajuda a ter mais expressões, não menos
achado da internet da semana:
#13 como sair da bad vibe
·meu copo de café para viagem continha matchá com leite de aveia (que nem posso tomar). a luz da manhã se espalhava, e vibe parecia limpa depois de uma noite de chuva pesada. quase como se a tempestade tivesse lavado as calçadas e as nóias de todos os paulistanos enquanto dormiam.
O detox de dopamina, também conhecido como jejum de dopamina, é uma prática que consiste em reduzir ou eliminar o uso de substâncias e tecnologias que aumentam os níveis de dopamina. O objetivo é se privar de descargas físico-químicas por um período de tempo para melhorar a saúde e o bem-estar.
A ideia é que, sem essas fontes de prazer, a dopamina diminua e a pessoa se sinta mais satisfeita com coisas simples. Quando voltar a praticar as atividades abandonadas, a pessoa se sentiria mais alegre
eu recomendo MUITO, mas é violência pura.
A Jornada do Herói é um modelo narrativo que descreve uma estrutura comum em histórias de aventura, mitos e lendas. Desenvolvida e popularizada pelo mitólogo Joseph Campbell no livro O Herói de Mil Faces, a Jornada do Herói se refere a um ciclo de etapas que representam a trajetória de transformação de um personagem. Esse modelo também é conhecido como "Monomito" e é frequentemente utilizado em literatura, cinema, desenvolvimento pessoal e até marketing.
Ter a Lua em Capricórnio, astrologicamente, pode influenciar a pessoa a desenvolver uma visão de mundo voltada para a responsabilidade, o controle e, muitas vezes, a cautela em relação aos recursos. Como a Lua representa as emoções, a segurança e a maneira como se busca conforto, a energia de Capricórnio, que é prática e ambiciosa, traz uma tendência a ver a vida com uma perspectiva de limitações e obrigações. Esse posicionamento pode gerar uma sensação de que o apoio emocional ou os recursos são escassos e de que é necessário esforço constante para garantir segurança e estabilidade.
O hedonismo é uma filosofia que defende que o prazer e a satisfação são os principais objetivos da vida humana. De acordo com o hedonismo, a busca por experiências agradáveis e a evitação de dores ou sofrimentos são as motivações naturais das ações humanas. Esse pensamento tem suas raízes na Grécia Antiga, com filósofos como Aristipo de Cirene e Epicuro, embora ambos tivessem interpretações diferentes sobre como alcançar o prazer de maneira significativa (e, sim, se você é minha aluna vai perceber que tem uma pitada hedônica em tudo o que ensino).
Ao cultivar continuamente uma única espécie de planta, os mesmos nutrientes são extraídos repetidamente do solo, o que esgota esses nutrientes específicos ao longo do tempo. Cada planta tem necessidades nutricionais próprias; ao plantar sempre a mesma espécie, determinados nutrientes — como o nitrogênio, o fósforo e o potássio — são removidos em excesso, enquanto outros ficam acumulados. Isso leva ao empobrecimento do solo, pois ele perde a diversidade de nutrientes necessária para sustentar uma produção saudável e balanceada.
Válida a reflexão e a leitura. Obrigada pela partilha
Me fez lembrar da música “Sete Vidas” da Pitty 🩵