#5 mudanças de opinião, Jorge Drexler e a diferença entre trabalho e ofício
ou "respeitar o tempo que as coisas levam para serem produzidas"
o garçom parece o Matt Corby - e é tão educado quanto imagino que Matt Corby seja - quando me passa as duas garrafinhas de água em temperatura natural (me lembrem de contar sobre minha jornada 99% sem álcool depois). "a equipe está sendo bem paga, que bom!" digo para a amiga que me espera na fila. depois de anos como garçonete, consigo reconhecer uma equipe que recebe um valor minimamente justo.
estamos calmamente atrasadas, procuramos nossos lugares no mar de mesas. os ingressos foram comprados de última hora, como eu gosto. bestie e eu quase esquecemos o dia do evento, como de costume.
foi o tempo de sentarmos e um áudio de Whatsapp abre a apresentação. presto atenção em cada palabra em espanhol. ‘¿A quién se le ocurrió que vas a escribir una canción con la palabra mesoproterozoico?’ - o áudio termina, e a orquestra entra.
sigo na sensação agradável gerada pela boa vontade do matt corby garçom, quando meu crush supremo aparece de terno branco e começa a cantar “Corría la Era del Mesoproterozoico...”. me lembro da moça que me revistou e da funcionária no caixa. observo o casal na mesa da frente, tão emocionado quanto eu. uma mulher simpática com uma bandeja serve vinho branco. "todo mundo está feliz nesse recinto?" me pergunto.
o show desarolla e o insight vem. eu entendo a frequência nova que cada célula do meu corpo está acessando naquele instante. toda aquela experiência se tornava mais um capítulo em uma longa história que venho escrevendo sobre a relação entre o trabalho e a felicidade.
"... La vida, ella siempre con sus estratagemas..." ele canta.
a minha bolsa preferida é de couro vermelho chianti, como um vinho perfeitamente envelhecido. uma meia lua em nobuck fecha sua aba cortada com precisão, a alça trançada com mosquetão dourado faz dela clássica o suficiente para eu fingir que herdei da minha avó. a perfeita combinação entre a hippie que um dia acreditei ser (RISOS) e a dondoca que me tornei. eu amo o cheiro, eu amo a costura perfeita e eu amo como consigo sentir o tempo que ela levou para ser sonhada-pensada-criada.
eu não faço ideia de quanto paguei nela. e, enquanto isso declara o privilégio que cavei nessa sociedade, me atento para um outro detalhe nessa falha de memória: não lembro o preço porque não questionei nem por um segundo o seu valor.
minha vida é repleta de outros objetos e experiências nos quais investi nos últimos anos sem fazer contas sobre "o que valem", e que refletem o quanto eu respeito o tempo das coisas. o tempo que aquilo que eu desejo toma de quem faz meu desejo acontecer - sem barganhas aqui.
ainda assim vivo em uma aflição continua, queimando em fogo baixo, por não poder produzir na velocidade que "o mundo" me pede. o meu ganha pão (em suas várias formas) é artesanal. o cerne do que coloco no mundo não existe fora de uma relação saudável entre o tempo e eu, o universo e eu.
mas tem uma parte mecânica e engenhosa que se torna vital para que esse serviço possa ser firmado e me sustentar. as burocracias, as técnicas, as plataformas, o yang disso tudo.
o seu trabalho e o seu "propósito"
existe uma distinção entre o trabalho, ofício e arte (mas da arte falamos outro dia) que gosto de fazer.
Ofício tem origem em 'officium', que, por sua vez, tem ligação com 'opifex' (formado por 'opus', obra, e fex, sufixo ligado ao verbo 'facere', que está na origem de fazer). 'Opifex' era aquele que fazia a obra, 'officium' era o trabalho do “opifex”1
Os romanos acrescentaram a este “ofício” um sentimento de dever, juntamente com fidelidade e obediência. Na verdade, Cícero num dos seus tratados[1] explica-nos que os cargos são obrigações dos homens dentro da sociedade a que pertencem. Para ele, é da natureza do homem ser útil à sociedade e, de acordo com Platão, afirma que “não nascemos apenas para nós mesmos, mas devemos uma parte ao nosso país, outra aos nossos pais e outra aos nossos filhos. amigos".2
A palavra trabalho deriva do latim tripalium ou tripalus, uma ferramenta de três pernas que imobilizava cavalos e bois para serem ferrados. Curiosamente era também o nome de um instrumento de tortura usado contra escravos e presos, que originou o verbo tripaliare cujo primeiro significado era “torturar” Os gregos e os romanos diferenciavam o trabalho criativo (Artes liberais dos artistas e elites) do trabalho braçal ou penoso (Artes mecânicas dos escravos).
Trabalho criador = "Ergoni" (grego) e "Opus" (latim)
Trabalho braçal = "Ponosi" (grego) e "Labor" (latim)
Nesse sentido insere-se também a antiga tradição bíblica do trabalho como castigo, ao condenar o homem comum expulso do paraíso (Adão) à labuta para ganhar o pão de cada dia ("tu comerás o teu pão, no suor do teu rosto").3
confundir o que eu crio no mundo com o que eu faço para que minha criação alcance pessoas me levou a um lugar cinza e morno que espero que você nunca encontre. lugar que eu chamo de burnoutinho.
o meu ofício é um fazer que envolve o próprio tempo. sempre foi. na moda, na astrologia, na produtividade, na saúde: estou sempre falando da vida passando. uma vida examinada, presente, recriada. aí está minha contribuição para a sociedade de hoje, meu dever.
o trabalho que faço – o dia-a-dia entre reuniões, e-mails, plataformas e invoices – mecanicamente permite que eu me sustente com o meu ofício, que ele se transforme em dinheiro.
o ofício, a arte e o trabalho hoje andam juntos. porque na estrutura que vivemos, com o preço do pepino-japonês-orgânico que eu insisto em querer, apenas trocar o que eu faço (em uma transição crua e livre de plataformas) não seria o suficiente.
mas eles não podem ser uma coisa só. não podem se fundir, nem nos confundir.
se eu não respiro fundo numa segunda-feira quando meu celular sai do modo "não perturbe", eu mesma adormeço. passo a acreditar que estou no planeta Terra para que meu story aumente em visualizações (e para reclamar comigo mesma por não me forçar a postar um pouco mais) ou para executar tarefas estranhas do mundo moderno o mais rápido que eu puder.
eu esqueço dos astros, do meu estudo sobre processos criativos, da minha formação como coach de saúde integrativa, do meu nome mágico. de todas as experiências transcendentais que me constituem e são a matéria prima do que depois vira curso, vira leitura, vira experiência que eu oferto.
uma neblina me cobre e eu fico confusa. de repente sou eu e um monitor de 13 polegadas, um café já frio e uma falta de vitamina B12 deixando tudo triste. uma sensação vazia e abafada de tédio e obsessão, impulsionadas pelo medo da escassez.
quem vem de onde eu vim, sabe que essa é uma cicatriz que não dói só quando o tempo está fechando.
o que podemos fazer para voltar a respeitar o (nosso) tempo?
no show, Jorge Drexler contou que perguntaram a Leonard Cohen (e eu não tenho certeza de que é dele mesmo que estamos falando, mas gosto de como meu cérebro ilustra essa cena, então vai ficar no texto) o que ele recomendaria para ajudar a escrever. a resposta foi "nothing works". "nada funciona".
Jorge segue a linha de pensamento, dizendo que o álbum "Tinta y Tiempo" levou 42 semanas para ficar pronto. quarenta delas tentando produzir, duas se rendendo e entregando o processo ao que ele descobriu ser o centro do seu motor criativo: a relação com outros músicos. quarenta semanas "fazendo" o álbum no campo sutil e duas materializando.
para mim, bom, "nada funciona" além de tomar tempo. especialmente quando se fala do ofício. trançar o couro, costurar o forro com cuidado. só para depois desfazer tudo porque uma luz que entrou na janela me fez perceber que "não é por aí". e isso, minhas caras, é o motivo de eu ter me tornado uma profissional de produtividade. a única maneira de sobreviver é organizar todo o resto em volta disso.
eu agradeci por cada minuto de "atraso" que aquelas músicas do “Tinta y Tiempo” podem ter demandado, eu não queria que absolutamente nada fosse diferente, tampoco queria que tivessem sido escritas no "tempo de máquina". eu esperaria quanto fosse (claro que, no pronto socorro, eu não tenho toda essa paciência, mas nem tudo é urgente e isso precisa ser pontuado) para estar ali.
temos que prestar atenção e valorizar os detalhes de tudo (tudo), medindo o tempo de vida que foi colocado tanto no ofício quanto no trabalho. porque a arte vale o quanto custa, a arte custa vida e quase todo trabalho tem arte dentro.
me permita mudar (levemente) de opinião
minha primeira newsletter foi sobre meu incômodo com a ideia de que "trabalhar com o que você ama" é a solução dos nossos problemas. e eu ainda vejo a problemática.
mas 12 meses depois dessa primeira edição, a vida me deu uma pequena mudança de perspectiva. digamos que uma luz entrou pela janela e eu percebi que não era totalmente por aí.
um traço que me toca profundamente nas pessoas que admiro é a capacidade de se dedicar com leveza aos seus trabalhos e responsabilidades, enquanto constroem quase uma "vida paralela" onde conseguem explorar sua criatividade, seus prazeres ou seu ofício. não transformar tudo o que você ama em trabalho: eu amo isso, eu me inspiro nisso, eu invejo isso com todas as minhas forças.
mas, aqui vai um update: essa vida dupla não é para mim. demorei um ano para entender que não prospero nessa configuração. triste constatação (inclusive estou preparando uma lista de banhos de água fria - estimulantes ainda que chocantes - que os 30 me deram) já que essa vida paralela era meu delírio de consumo pós-burnoutinho.
tenho capacidade de produzir em larga escala e liderar uma equipe, sim. mas não tenho habilidade alguma para me divertir nas horas vagas. eu sei fazer o trabalho mecânico, mas eu sou do ofício e da arte dos homens das mulheres livres, só isso me nutre. ou eu me divirto enquanto trabalho, ou já era. em pouco tempo desapareci e não estou mais aqui por vocês.
é possível encontrar propósito dentro do que você faz hoje - fazer brotar sua arte no seu emprego.
é possível criar mecanismos e estrutura para fazer o que ama - e tornar isso seu sustento.
como escolher entre os dois? bueno, depende.
você tem mais tinta ou você tem mais tempo?
cá entre nós
do dia 28 de novembro ao dia 5 de dezembro, vou enviar e-mails especiais como abertura oficial da versão paga do Sendo Amadora. no meu coração, chamo de "Sendo Apoiadora" rs
não se preocupe, continuarei enviando conteúdo (do bom) gratuitamente algumas vezes por mês.
estou habilitando o formato assinatura aqui no Substack como forma de investir energia em algo que amo fazer, me comprometendo de fato com essa audiência. mais informações nesse post aqui.
com isso, você pode
a) esperar até o lançamento oficial para acompanhar os posts especiais (que serão uma pequena prévia do conteúdo exclusivo que assinantes receberão) e decidir sobre,
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se você já gosta do que lê por aqui, estou oferecendo 20% de desconto para early adopters. vou manter esse valor de R$36/mês (menos que um combo de café+croissant por semana) pelo tempo que puder, mas quem assina agora não terá reajuste no futuro.
também vou sortear um presente entre quem assinar até o dia 27, como uma forma de agradecer pelo apoio em minha carreira solo (:
então sinta-se livre para assinar hoje, esperar pela abertura oficial ou continuar lendo gratuitamente (por hora, posts gratuitos quinzenais, e prévia dos posts pagos) <3
https://pt.wikipedia.org/wiki/Trabalho_(economia)
Nem acredito que tem mais de 1 ano a primeira postagem. Sendo apoiadora por motivos de: claro. Feliz em poder apoiar sua arte. <3
Uau! Uau! Mil vezes, uau!! Quanta inspiração em uma tacada só! Obrigada por tanto, Ananda ;)